As singelas tesselas, pedaços de matéria fina, são delicadamente postas no quadrante artístico da tela. Há espaços vazios entre elas, como pausas no tempo da imagem, como respiros para evitar o choque ou a má disposição dos fragmentos.
É assim que trabalham as musas, já que o mosaico revela a arte delas. É pensando em encontros e distâncias que elas brincam de formar o desenho, aquele que de perto são só pequenos cacos fixados, mas que de longe nos mostra a sua efígie completa.
“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
‘Navegar é preciso; viver não é preciso.’
Quero para mim o espírito desta frase, transformada
A forma para a casar com o que eu sou: Viver não
É necessário; o que é necessário é criar (...)”
Como no trecho do poema do mestre português Fernando Pessoa, Às margens do rio escuro, belíssima criação literária do magistrado, historiador e escritor Getúlio Neves, nos faz entrar numa fascinante embarcação que atravessa o Rio Itaúnas, ao ritmo de seus mitos e ritos sincréticos.
Um beijo antes de dormir.
Ao acordar, a mesa posta é o cenário para falas parentais de orgulho e afeto à estudante de uniforme escolar e mochila nas costas.
— Boa aula, filha, você se sairá bem na prova.
— Obrigada, mãe, você é a melhor mãe do mundo!
— Arrasa, filhota!
— Valeu, pai!
Se você vive nesse comercial de margarina, queira receber minhas sinceras congratulações. Mas, se como Júlia, a protagonista de A pequena coreografia do adeus, da premiada escritora Aline Bei, o ambiente familiar é sombrio, abusivo e sufocante, eu lhe digo, leitor(a), que não é para menos.
Quem ama educa e esquece a própria vida? Quem cuida de quem cuida se quem cuida não tinha ideia da escravização que seria esse cuidado? Mãe é mãe, paca é paca e mulher é tudo... Um bando de mamíferas cansadas, que, se tomar a pílula azul da maternidade, conhecerá um admirável mundo novo, longe da sensação de liberdade e desperta para as correntes em forma de fraldas, uniformes escolares e cheques especiais para dar conta de outro ser?
Renúncia. Nenhuma palavra resume tão bem a revolução da maternidade.
Sentimento. O substantivo para a ação de sentir. A palavra ainda existe no dicionário, mas em que medida ainda existe dentro de nós? Ainda haveria sentimento no interior dos seres humanos? Ou, como disse um grande amigo escritor, “o ser humano faz o Diabo tremer”?
“Palavra brega”, disse Antônio, meu amado filho, quando o questionei sobre o que sentia em relação à sua instituição escolar. “Não sinto nada, mãe, não preciso sentir nada, só preciso estudar e passar no Enem.”
Manhã de segunda-feira. Os primeiros raios solares já começam a aquecer o chão do quarto. Aves diligentes sobrevoam o quadrante de Mata Atlântica ainda preservada à procura de alimento e acasalamento. Sirenes do alvorecer.
Abro a janela para deixar o dia entrar e percebo o privilégio de despertar como os pássaros, aos pés do Mestre. Consciente dos intentos a conquistar no turbilhão da rotina, reservo-me, no entanto, alguns minutos matinais para contemplar a imponência perene do Mestre Álvaro. Tempo revigorante de meditação.
Meninos de olhos áridos, como o solo rachado do sertão de Pernambuco. Nós os vimos pela janela arenosa do carro rumo ao nosso novo lar. Eles não nos viram. A velocidade do carro, embora não fosse tão alta, era elevada o suficiente para que eles não percebessem os novos amigos que chegavam da capital.
Como alertou João Cabral de Melo Neto, o sol “tiro de inimigo” fazia a pele arder como carne fresca embrasada. Éramos três, eu e meus dois irmãos, a pedir clemência aos céus e água a quem passasse no nosso caminho.
Pausa. Além de movimento, o corpo humano precisa de descanso e de alimento. Elementar, meus caros leitores? Nem tanto. Como revela, de um modo “tapa na cara”, o brilhante filósofo Byung-Chul Han, estamos cada vez mais imersos numa existência econômica. Acabaram-se as preocupações coletivas, as ideias de construção de uma sociedade mais livre, justa e igualitária. A inquietação gira tão somente em torno de atingir metas, dobrar metas e inventar mais metas extenuantes e alienantes, para a exibição, presencial e sobretudo virtual, de um desempenho marqueteiro do “seja a sua melhor versão.”
Sentada num banco distante do pátio principal da escola, Manuela ouvia o som do vento a bater nas folhas do livro que começara a ler. No Colégio Mundial, todos diziam que ela era estranha, “diferentona”, freek, pois só falava de personagens, de figuras extraídas de histórias literárias, com as quais desde a tenra infância convivia, como se reais elas fossem. De fato, para Manu, nenhum de seus colegas poderia ser comparado a um Heathcliff, a um Robinson Crusoe, a um príncipe Míchkin, muito menos a uma Aurélia Camargo, a uma Mrs. Dalloway ou a uma Anna Karenina. Definitivamente não. Jogos de futebol, passeios no shopping center, matinês ou escapadas à praia, nada disso se comparava ao que sentia ao mergulhar no mundo da ficção.
Fim de uma tarde primaveril. Embora façam parte do cenário de nossas vidas, as cores do crepúsculo nunca deixam de apresentar matizes surpreendentes. O azul-celeste transforma-se num delicado tom róseo, que, por sua vez, cede ao alaranjado, que desabrochará num violeta intenso, para, enfim, encobrir-se com o manto negro da noite. O tremelique das estrelas, a imponência de uma lua brilhante, o perfume sedutor trazido pelo vento úmido e inebriante, tudo no arrebol é fonte de admiração e inspiração para quem traz a sensibilidade nas retinas e à flor da pele.
Abro a janela. Um sol de inverno, fraco e recalcitrante, aquece como pode o quarto onde começo a escrever estas linhas. Diante de mim, um belo livro reforça a claridade da estrela longínqua, iluminando as minhas retinas nesta manhã de segunda-feira: A vida depois da luz, do talentoso escritor, advogado e professor Anaximandro Amorim.
Segundo a célebre frase do autor norte-americano Mark Twain, “Os dois dias mais importantes da sua vida são: o dia em que você nasceu, e o dia em que você descobre o porquê”. Com efeito, para Anaximandro Amorim, a revelação do sentido de sua existência deu-se sob a forma trágica de um acidente automobilístico no quilômetro 239 da BR-101.
Onde mora a liberdade? Estará ela em endereço longínquo? Numa carona na beira da estrada? Na estreita abertura de uma gaiola? No som metálico que antecede o rompimento dos grilhões? Ou a liberdade estaria instalada em uma sala escura, parcamente arejada e bem escondida dentro de nós?
Um dia frio. Um bom lugar para ler um livro. Num dos gélidos e djavânicos domingos de agosto, constato que meus desejos invernais não vão além da singela e completa alegria de escolher um cantinho quente e acolhedor onde eu possa me recostar e mergulhar nos mares literários, às vezes calmos, às vezes bravios, mas sempre enriquecedores. De fato, como disse Zorba, o grego, de Nikos Kazantizakis, “minhas alegrias são muito grandes porque muito simples”.
A luz do sol nas folhas das castanheiras refletia tons de um verde vivo sobre as areias da Praia da Costa. A beleza convidativa do dia, no entanto, e infelizmente, ainda não é argumento suficiente para convencer quem não consegue enxergar a formosura do universo dentro de si.
Nesta manhã reluzente, Joana, cardiologista renomada em Vila Velha, não quis ir à praia. A balança, disposta com cuidado ao pé da cama, decretou a sua interdição. Pensou no shake guardado no armário da cozinha e decidiu que seria seu café da manhã, já que “precisava” emagrecer antes da festa de formatura de sua filha.
O destino de cada um de nós está traçado. A linha da vida, fiada com esmero pelas três Moiras, será por elas cortada ao fim de nossa existência. Mulheres como potências criativas ou algozes da destruição. Mulheres cruzando os caminhos masculinos, escrevendo ou apagando intenções, sentimentos, pensamentos de vida e de morte.
No livro Todas elas, agora, do brilhante professor, escritor e ex-secretário de cultura do município de Vitória Francisco Grijó, as mulheres são um objeto de fina análise, de uma verdadeira dissecação à lupa de quem evidencia o costume de vê-las sob vários ângulos, numa profusão de minúcias, embora caracterizadoras apenas de uma parcela daquelas que podem ser denominadas “mulheres”.
O desejo maior da primavera é a nossa libertação. Ela exige que janelas se descortinem, portas se abram e pessoas saiam de casa para uma entusiasmada ocupação de praças, parques e praias. Atendendo ao anseio da estação das flores, Flora, uma advogada militante da área ambiental, decidiu aproveitar o sábado ensolarado para um passeio com as amigas: sem dúvida uma de suas maiores alegrias.
Advogada e escritora pernambucana radicada em Vitória, a cidade que escolheu para viver. Leitora dedicada desde a infância, nesta página compartilha textos que falam da vida e dos livros, se é que seja possível distinguir entre eles.
© 2022 Marcela Guimarães Neves