23 de agosto de 2022

A discípula

Marcela Guimarães Neves

Um dia frio. Um bom lugar para ler um livro. Num dos gélidos e djavânicos domingos de agosto, constato que meus desejos invernais não vão além da singela e completa alegria de escolher um cantinho quente e acolhedor onde eu possa me recostar e mergulhar nos mares literários, às vezes calmos, às vezes bravios, mas sempre enriquecedores. De fato, como disse Zorba, o grego, de Nikos Kazantizakis, “minhas alegrias são muito grandes porque muito simples”.

Quase sempre este espaço de nutrição do espírito é meu quarto de estudos, onde me encontro envolta aos meus livros, ou seja, às obras dos grandes mestres do passado e do presente que me fazem caminhar pela vida com a certeza de que ao menos um de seus males estará definitivamente afastado de minha existência: o tédio. Não tenho palavras para agradecê-los por cumprirem, com primor, tão nobre missão.

Mestre. Uma visita ao dicionário esclarece bem a extensão e a profundidade desta pequena e sublime palavra: pessoa dotada de excepcional saber, competência, talento em qualquer ciência ou arte. Indivíduo que ensina. Mestre, portanto, é, como Diógenes de Sínope, o portador da lamparina acesa, aquele que procura o conhecimento e a virtude, guiando por estas trilhas seus alunos, seres ainda desprovidos das luzes da sapiência; ou como Sócrates, aquele que pelo parto maiêutico, empenha-se a dar à luz uma sabedoria inata, intuitiva, tornando-a externa e racional.

Com todo o respeito aos bravos anarquistas, não consigo segurar o rojão da vida sem Deus nem mestre; ainda que, como Albert Einstein, tenha eu por divindade o Deus de Spinoza, ou seja, a Natureza, a Grande Deusa. E esta mestra já nos dá uma profusão de preleções, como a união dos pinguins, a paciência materna da fêmea do polvo ou agilidade dos felinos na conquista do alimento.

Entre os de nossa espécie, contudo, não me acanho em reverenciar os sábios cientistas, juristas, filósofos e artistas da humanidade. A luminescência desses gênios, a clarear com experiência e excelência todas as épocas da História, deve ser celebrada a cada livro aberto, a cada teoria ensinada, a cada obra de arte visitada e revisitada em museus, galerias, ou nos muros e calçadas das ruas e avenidas contemporâneas.

Com a devida vênia ao caminho tomado pelo ilustre Jiddu Krishnamurti, que, após receber fartas lições de brilhantes preceptores hindus, chegou à conclusão de que nós devemos ser nossos próprios mestres, acredito que este não seja o melhor percurso a seguir. Com efeito, há que se perceber que este somente assim sentenciou porque traçou o caminho de seus antecessores, em sua intensa busca por sabedoria.

Na minha modesta visão, portanto, o caminho do conhecimento deve ser observado como uma corrente do bem, uma longa escada em que, para subirmos os degraus, contamos com a mão firme de quem já avançou um pouco mais, e este com a de quem o precedeu, e assim sucessivamente.

Se a família é a nossa primeira escola, tive o privilégio de ser agraciada com pais que foram verdadeiros instrutores no ofício de amar os livros, a arte, a ciência, enfim, a grandiosa e infindável trajetória de aprendizado cultural. No entanto, para além desta culta entidade familiar, em minha vida tive outro grande mestre.

Tinha eu doze anos quando o conheci, numa festa organizada por meus pais para os amigos do célebre e saudoso grupo literário Sabalogos. A imagem daquela noite ficou indelevelmente gravada em minha mente. Como por mágica, após soar o estridente toque da campainha, adentrou no apartamento uma reluzente figura que, para mim, assemelhava-se a uma criatura de outra atmosfera.  De mãos dadas com a esposa, vestindo uma camisa de gola rulê, usando óculos de aros gigantescos — mas que não nos desviavam de seu sorriso aberto e esperto —, com um livro grosso embaixo do braço, avistei meu futuro mentor. Não fosse pelo rosto sorridente, diríamos, pelo semblante, que parecia um perfeito Jean-Luc Godard capixaba.

Já era um escritor conhecido no Espírito Santo, um dos melhores. Minha admiração por escritores (carreira que já pretendia seguir com ardor), deixava-me, num primeiro momento, quase catatônica, quando os conhecia pessoalmente. E, diante daquele exímio literato, foi difícil recobrar os movimentos. Afora sua bela figura de intelectual, de seus discursos pululavam Dostoiévski, Thomas Mann, James Joyce, Eça de Queiroz, Machado de Assis, entre outros baluartes da literatura mundial. Fiquei num completo estado de petrificação. Apenas ouvia, assimilava e admirava.

Crianças e adolescentes até que tinham voz ativa em minha casa, porém o que dizer para esse homem que sabia tanto, conhecia tanto e expressava-se numa oratória modulada por entonações de serena paixão. Naquela época, ele não sabia a transformação que inaugurava em meu espírito e meu coração. Para além de ávida leitora, seguindo as instruções de meus adoráveis genitores, seria também escritora, e, assim, seguraria na mão daquele mestre e com ele subiria os degraus para conseguir realizar o meu luminoso sonho.

As andanças em périplos para além do Atlântico e em terra brasilis não me desmotivaram. Ao retornar à capital espírito-santense, procurei meu orientador em matéria de escrita criativa, e ele, com toda a paciência, delicadeza e generosidade de seu enorme coração, segurou-me pela mão, guiando-me com sua lanterna pelos muitos níveis da monumental escadaria literária. Se hoje posso me considerar uma escritora, ainda que na eterna categoria de aprendiz na arte da linguagem, agradeço, como dedicada discípula, ao mestre Pedro José Nunes, por todos os valiosos ensinamentos.

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Marcela Guimarães Neves

Advogada e escritora pernambucana radicada em Vitória, a cidade que escolheu para viver. Leitora dedicada desde a infância, nesta página compartilha textos que falam da vida e dos livros, se é que seja possível distinguir entre eles.

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