Sentada num banco distante do pátio principal da escola, Manuela ouvia o som do vento a bater nas folhas do livro que começara a ler. No Colégio Mundial, todos diziam que ela era estranha, “diferentona”, freek, pois só falava de personagens, de figuras extraídas de histórias literárias, com as quais desde a tenra infância convivia, como se reais elas fossem. De fato, para Manu, nenhum de seus colegas poderia ser comparado a um Heathcliff, a um Robinson Crusoe, a um príncipe Míchkin, muito menos a uma Aurélia Camargo, a uma Mrs. Dalloway ou a uma Anna Karenina. Definitivamente não. Jogos de futebol, passeios no shopping center, matinês ou escapadas à praia, nada disso se comparava ao que sentia ao mergulhar no mundo da ficção.
Os pais da adolescente inquietavam-se com os ideais romanescos da jovem. No entanto, deixaram-na trilhar os ladrilhos amarelos de sua Oz particular, porquanto consideravam o afastamento da estudante do plano da realidade como uma das bizarrices típicas da adolescência. Manuela conversava sobre sua melhor amiga, a moreninha Carolina, imitava os maneirismos de Elizabeth Bennet, criticava ou aplaudia o comportamento da marquesa de Merteuil. As refeições caseiras eram recheadas de espectros livrescos de eras passadas; as festas em família sempre terminavam com relatos de comédias burlescas, tragédias gregas, ou seja, com um universo clássico que não se coadunava com a rapidez, a (des)informação e a insanidade disfarçada no cotidiano da nossa aldeia global, superficial e ultratecnológica.
A garota não só incorporava as falas, os gestos, mas também queria vestir as roupas, usar os acessórios, circulando, pela Vila Velha dos anos 2000, como uma etérea dama renascentista, uma dançarina da Belle Époque ououtra imagem transportada de sua leitura do momento para o palco obscurecido dos viventes. O interessante é que ela não se importava com as zombarias, com os bullyings, ainda que permanecesse sozinha, num canto distante da agitada quadra escolar. Pensava que a vida robótica dos seus angustiados genitores - impulsionada por uma aceleração sem propósito e um desejo de competição com pessoas que eles não conheciam - impedia o pensamento, dificultava os sonhos, quebrava uma cadência própria às coisas do espírito, ou seja, rompia com tudo aquilo que ela entendia ser o fluxo correto de uma vivência realmente produtiva, criativa, artística.
Como era uma excelente aluna, os professores a deixavam em paz. Viam a moça com certa desconfiança, já que ela, muitas vezes, aprofundava, de uma forma elegante e espontânea, assuntos que estes somente conheciam em suas mais rasas superfícies. Manu não perdia tempo com Google, Wikipédia ou qualquer outro buscador da Internet, porque sabia que nada se comparava às vastas bibliotecas municipais, estaduais, enfim, a todos os maravilhosos centros de conhecimento onde costumava passar as tardes - e por vezes as noites - de sua curiosa e dedicada juventude.
Mas o tempo, observador perene de nossa curta existência, viu Manuela crescer, deixar de lado as vestes de antanho e envolver-se, a muito contragosto, com artifícios eletrônicos que costuma utilizar em seus trabalhos como advogada. No entanto, o passar dos anos não eliminou sua mania de falar sobre personagens, como se eles fossem personas encarnadas, tais quais amigos próximos, familiares ou vizinhos de bairro.
- Você não sabe o que Julien Sorel fez ontem. Se eu contar, você não vai acreditar!, disse Manuela a uma colega de escritório, ambas sentadas no corredor do Fórum Cível de Vila Velha, a esperar pela próxima audiência.
- Não sei de quem está falando, doutora, é um parente seu?
- É. Julien Sorel é um primo que está dando trabalho, brincou Manu com um sorriso nos lábios.
- Sei como é, parente é assim. Você deveria ver a quantidade de parentes esquisitos nos anúncios do Luciano. Seu primo é fichinha perto das figuras que aparecem lá.
- Luciano de Rubempré, de Balzac?
- Quem?! Não, mulher, Luciano Huck, do “Domingão com Huck”.
“Dona Luísa e senhor Basílio, vocês podem entrar, a audiência vai começar”, convocou o pregoeiro.
- Luísa e Basílio? Já sei no que essa história vai dar.
- Alguém já disse que você vive no mundo da lua, doutora Manuela?
- No mundo dos livros, doutora Graça, no mundo dos livros...
- Sei... Nossa audiência será a próxima.
Advogada e escritora pernambucana radicada em Vitória, a cidade que escolheu para viver. Leitora dedicada desde a infância, nesta página compartilha textos que falam da vida e dos livros, se é que seja possível distinguir entre eles.
© 2022 Marcela Guimarães Neves