A luz do sol nas folhas das castanheiras refletia tons de um verde vivo sobre as areias da Praia da Costa. A beleza convidativa do dia, no entanto, e infelizmente, ainda não é argumento suficiente para convencer quem não consegue enxergar a formosura do universo dentro de si.
Nesta manhã reluzente, Joana, cardiologista renomada em Vila Velha, não quis ir à praia. A balança, disposta com cuidado ao pé da cama, decretou a sua interdição. Pensou no shake guardado no armário da cozinha e decidiu que seria seu café da manhã, já que “precisava” emagrecer antes da festa de formatura de sua filha.
Rita, próspera advogada alagoana, radicada em Vila Velha, também não vai ao balneário porque fez uma cirurgia abdominal e, segundo ela, “está com o bucho todo rasgado”. Além do dolorido pós-operatório, sentia uma dor mais intensa, a dor de “precisar” dar um jeito em seu ventre “inadequado”.
Carolina, arquiteta premiada, mas com uma grave fobia social, disse que só vai se puder usar uma burca, pois “precisa” esconder até o pescoço seu vitiligo crescente. Está há tantos anos sem sentir o vento marítimo em seu rosto que acredita ser uma aventura quase sem sentido.
Paula já está na praia, pois, mesmo exausta com as horas de trabalho, cuidados com os filhos e com a casa, “precisa” passar ao menos duas horas na academia para malhar o físico como se malha Judas, em sábado de aleluia.
Jocasta, famosa design e artista plástica transexual, vai ao encontro de Paula, mas sabe que trans de biquíni “precisa” passar pelo “corredor polonês” de olhares injuriosos durante todo o trajeto até a libertação azul do mar.
Amigas que sofrem de um mesmo mal injusto e opressor: a eugenia dos corpos, a imposição inalcançável de um conformismo estético previamente padronizado. Por quem? Pela indústria? Pela publicidade? Pelo sistema? A lista pode ir bem mais longe, já que condicionamentos sociais são como chips, como softwares, implantados em cérebros doutrinados desde a infância. Muitos têm consciência da angústia, mas não arriscam a alforria. Sempre foi assim, não é? Muito difícil amar-nos e mudar as coisas, ainda que isso interesse mais a todas nós, parafraseando o genial Belchior.
Mas o que é esse corpo tão vigiado, biocontrolado (lembrando Michel Foucault), reprimido e abusado, senão um endereço, um local onde nos colocamos no mundo, um invólucro residencial que arrastamos por esta existência, como um caramujo sustenta seu casulo ou a tartaruga carrega seu cascudo esconderijo.
Entretanto, ainda que estejamos no grupo dos terráqueos, manifestamo-nos de uma outra forma, somos seres de outra espécie. Nossa estrutura orgânica pode até comportar certo genótipo que adquirimos com o nascimento, contudo, as nossas sinapses desejantes, nosso vazio construtivo, nosso nada na eterna busca de completude, como diria o grande filósofo Jean-Paul Sartre, é inescapavelmente afeito a transformações.
E Lavoisier tinha razão: tudo se transforma. Queiramos ou não, a metafísica da substância, apregoada desde os tempos aristotélicos, não se coaduna com a criatividade humana. Somos entes imaginativos; edificamos ideias sobre o mundo e sobre nós mesmos. Diferentemente de outros corpos terrestres, que todavia devem ser respeitados e admirados em suas essencialidades, somos seres existenciais, criadores demiúrgicos de nossa própria corporeidade.
Quando os franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari discorrem sobre a importância do conceito de devir para a subjetividade humana, ou a magistral Judith Butler traduz, em elaboradas explicações filosóficas, a força de corpos subversivos e identitários, temos de reverenciar a profundidade de teorias que nos dão a possibilidade de ver as nossas molduras corpóreas como verdadeiras obras de arte, telas sobre as quais colorimos a nossa materialidade enquanto entes livres, inovadores e repletos de uma energia pulsante e apta à eterna evolução.
Malgrado as imposições de estruturas repressivas que nos limitam e nos encolhem em nosso anseio de liberdade, e sendo este um ativo primordial a ser conquistado e reconquistado a cada dia, visto que a própria liberdade, como afirma a engajada filósofa Angela Davis, é uma luta constante, faz-se necessário ganhar a batalha para que os nossos corpos não caiam na “armadilha da essencialidade”, tal como alertava Sartre, e não sejam reduzidos às limitações criativas presentes em outros terráqueos. Se a nossa carne pode ser artisticamente moldável, de acordo com os ditames da nossa consciência e para nossa felicidade, todas as mudanças naturais, acidentais ou intencionais devem ser festejadas como um colorido a mais em nosso passe-partout orgânico.
Ver a humanidade como uma esfuziante galeria de arte nos dará mais serenidade para atingirmos os valores que devem, de fato, ser perenes entre os viventes deste planeta: direitos humanos, ética social, preservação ambiental... Enfim, ainda que no futuro sejamos complexos ciborgues, como brada em manifesto a filósofa estadunidense Donna Haraway, se conseguirmos adquirir e manter princípios de dignidade e respeito a nós, aos outros e à natureza, seremos sempre — embora não demasiadamente — humanos.
“Sou apenas mais uma bolinha no mundo”, diz Yayoi Kusama, artista plástica e escritora japonesa que tanto pintou esse pensamento aparentemente simples, mas que integra toda circunferência de nossa transitoriedade neste mundo. Assim como as esferas celestes nascem, expandem-se, transformam-se e desaparecem, também nós somos, como as estrelas, passageiras bolinhas que precisam brilhar.
E Joana, Rita, Carolina, Paula e Jocasta, olhando para o céu que resplandecia vontade de libertação, encontraram-se naquela praia e aproveitaram o dia como seixos felizes, a tornarem-se pérolas de pura aceitação das bolinhas terrenas que envolvem suas mentes brilhantes.
Advogada e escritora pernambucana radicada em Vitória, a cidade que escolheu para viver. Leitora dedicada desde a infância, nesta página compartilha textos que falam da vida e dos livros, se é que seja possível distinguir entre eles.
© 2022 Marcela Guimarães Neves