8 de agosto de 2023

Aos pés do Mestre

Marcela Guimarães Neves

Manhã de segunda-feira. Os primeiros raios solares já começam a aquecer o chão do quarto. Aves diligentes sobrevoam o quadrante de Mata Atlântica ainda preservada à procura de alimento e acasalamento. Sirenes do alvorecer.

Abro a janela para deixar o dia entrar e percebo o privilégio de despertar como os pássaros, aos pés do Mestre. Consciente dos intentos a conquistar no turbilhão da rotina, reservo-me, no entanto, alguns minutos matinais para contemplar a imponência perene do Mestre Álvaro. Tempo revigorante de meditação.

De fato, morar em Jardim Camburi é ter a chance de receber a força desta montanha mágica, como um elixir para seguir em frente, com a firmeza de quem se orienta pelo essencial, durável, constante.

Da porta de casa para fora, o barulho incômodo dos automóveis, tanto nas grandes vias quanto em estreitas avenidas, é como o arrulhar de gralhas, a anunciar o início de uma jornada em ritmo acelerado. Até as ruelas labirínticas de quando o local ainda era uma bucólica fazenda exigem, hoje, um cuidado especial, a fim de evitar atropelamentos, xingamentos e constrangimentos, quando motoristas e pedestres viram galos de rinha.

No bairro mais populoso de Vitória, contudo, são as pessoas, e não as máquinas, que dão o tom à música do mundo, a ser tocada como os estribilhos de bem-te-vis nas copas das árvores.

Moradores e transeuntes constroem suas existências como o João-de-barro ergue seu ninho: com minúcia e cuidado, ainda que, como esses engenheiros selvagens, que prendem as fêmeas no lar, alguns de nossos machos teimem em sufocar a liberdade de suas parceiras.

Embora o tempo seja curto, a demanda longa e o nível de exigência para conseguirmos a tal “felicidade” comprometa corpo e a alma da multidão de camburienses, todos sabemos de onde extrair o vigor necessário para nos mantermos eretos e dispostos, não esmorecermos na luta, não desistirmos. Como ensinava o grande filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, “a vida só pode ser compreendida se olharmos para trás, mas deve ser vivida para frente.” Para nós, tico-ticos em busca do fubá diário, a vida deve ser vivida olhando para cima, mirando os ensinamentos do Mestre.

Num mundo volátil em que objetos, desejos e relacionamentos se evaporam à velocidade da luz, a presença do Mestre Álvaro traz de volta a percepção da importância daquilo que permanece, ou deve permanecer. Todo o universo orgânico em seu entorno é um chamado à manutenção da vida, uma energia de continuidade, uma vibração do amor fundamental e divino.

Por mais que o mundo nos inflija um cotidiano robótico, o esplendor do verde que colore as praças e ruas de Jardim Camburi é um brinde à Mãe Terra. As conversas nas calçadas, os passeios nos parques, as frutas nas feiras, a brisa marinha, tudo isso é o luxo de quem não precisa se aventurar para além da relva camburínea, pois, aqui, tudo o que se planta dá, seja sustento ou sentimento.

Ao som da cotovia, aproveita-se o dia com leveza, sem pavonear aparências ou cacarejar vantagens. Já o canto do rouxinol é a lembrança da alegria noturna nos bares da Rua do Lazer. E na doce aurora, após momentos prazerosos, resta-nos a dúvida shakespeariana: quem cantou? Foi o rouxinol, candeia da noite? Ou a cotovia, arauto da manhã?

O encanto destas cercanias é a riqueza do hábito simples: é o canto pontual do sabiá-laranjeira ou o sábio chilrear da coruja-buraqueira; é o gesto suficiente e preciso para acordar e alegrar os corações dos residentes deste Jardim. Uma bela amostra disso são os piqueniques em família, sob o sussurro da noivinha e o bater de asas dos beija-flores, delícias da reluzente simplicidade de se morar em tão agradável espaço.

Como felizes perdizes, em comunhão com o grande fulgor da natureza que nos rodeia, nós sabemos, parafraseando o genial poeta Mário Quintana, que os outros passarão, e nós passarinhos, pois temos a grande sorte de viver aos pés do Mestre.

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Marcela Guimarães Neves

Advogada e escritora pernambucana radicada em Vitória, a cidade que escolheu para viver. Leitora dedicada desde a infância, nesta página compartilha textos que falam da vida e dos livros, se é que seja possível distinguir entre eles.

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