19 de outubro de 2022

A bruxa

Marcela Guimarães Neves

Fim de uma tarde primaveril. Embora façam parte do cenário de nossas vidas, as cores do crepúsculo nunca deixam de apresentar matizes surpreendentes. O azul-celeste transforma-se num delicado tom róseo, que, por sua vez, cede ao alaranjado, que desabrochará num violeta intenso, para, enfim, encobrir-se com o manto negro da noite. O tremelique das estrelas, a imponência de uma lua brilhante, o perfume sedutor trazido pelo vento úmido e inebriante, tudo no arrebol é fonte de admiração e inspiração para quem traz a sensibilidade nas retinas e à flor da pele.

De outro giro, as luzes da cidade são reverberações artificiais. Tendo nas mãos o livro A Criação do Patriarcado, de Gerda Lerner, encerro a contemplação das mutações da Natureza e acendo a lâmpada de tungstênio, reduzindo os reflexos dos astros sobre mim. Na sequência, qual não é o meu espanto ao ver um ser escuro, de asas paradas e extensas, grudado na parede da varanda, como um quadro pendurado há meses.

Reconheci a criatura. Diferentemente da colorida prima-irmã borboleta, a mariposa-bruxa, ou, simplesmente, bruxa, me encara sombria, altiva, numa imponência que não admite desvio do olhar. Não estremeço, agradeço. Embora a crendice popular a veja como sinal de mau agouro, presságio de falecimento, presença de entidade ruim, a bruxa é, sobretudo, símbolo de resistência, poder e transformação.

E a luta é injusta e cruel. Reza a lenda que só há um modo de pôr fim à “maldição da mariposa”: matá-la sem encostar nela, queimando-a com querosene e sal grosso. Destino trágico de muitas bruxas...

Como se estivesse a ouvir minhas íntimas reflexões, o inseto se desloca, pousa no entrelaçado da rede, onde desde mais cedo me encontro, e passa a mirar-me nos olhos, antenas dançantes, como batutas para a música encantada que trazia consigo. Permaneço imóvel, não movo um músculo, escuto o som do silêncio que grita em meus ouvidos o clamor de outras bruxas. Doutas e experientes quanto aos segredos da Natureza (fertilização, cura, nutrição e renovação), as feiticeiras, ou seja, mulheres livres e sábias, em tenebrosos momentos da história da humanidade, também não escaparam do assustador desígnio: a tortura, a fogueira, o sal, a pá de cal.

Eram elas verdadeiros estorvos para misóginos que não admitiam a existência dessas magas transmissoras de um conhecimento ancestral. Mestras e mentoras deste e do outro plano espiritual, fontes de sabedoria milenar, videntes, curandeiras, parteiras, herbólogas, encantadora de animais, witches eram mulheres que, no cotidiano, viviam como todo o mundo, não sendo como ninguém, parafraseando a filósofa Simone de Beauvoir.

A luz da sabedoria cega incautos, ignorantes e preconceituosos. Para esses seres obtusos, é preciso combatê-la, eliminá-la, a fim de que não ilumine pessoas desejosas de libertação. Faz-se necessário desfazer o círculo, parar a dança, silenciar os tambores, esquecer os rituais dos sabás.

Mas tal qual a mariposa disposta em minha frente, as bruxas persistem, a volta da Deusa, símbolo de um retorno à Mãe Terra, ao solo sagrado que gera toda a vida neste planeta, é a resistência de mulheres de todos os gêneros que, em permanência, honram aquelas que morreram para que elas se tornassem ilustres guardiãs. Seus ciclos acompanham as fases da lua, suas forças criativas pulsam em suas almas e transbordam em arte e beleza. O retorno do prazer e da alegria, o distanciamento da culpa, o regozijo com a vida, o Jardim de Delícias que frutifica entre mentes pensantes, harmoniosas no anseio de retirar do mundo o domínio de um patriarcado violento, virulento, pestilento, tudo isso representa uma volta a um modus vivendi anterior ao desejo de controle e acumulação.

Imagino um sorriso, fantasio um olhar de aprovação, na fisionomia da bela lepidóptera. Compreendemos o chamado, aprendemos a lição, o espírito feminino inserido na diversidade dos corpos, hoje rompe as correntes, assume sua sexualidade, brinda à vida e à liberdade, nega o domínio, prega o consenso, a interação, a conexão, com todos os seres que aqui, nesta superfície terrena, coabitam, numa comunhão para a preservação de todas as bênçãos que Gaia nos dá, porquanto tudo o que ela nos oferece é suficiente para vivermos em paz.

Como descreve Rose Marie Muraro, em seu ensaio sobre a obra O Martelo das Feiticeiras (Malleus MaleficarumI), obra nauseante, ainda que de grande importância histórica, escrita, em 1484, pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, as feiticeiras do século XXI são uma legião. “São bruxas que não podem ser queimadas vivas, pois são elas que estão trazendo pela primeira vez na história do patriarcado, para o mundo masculino, os valores femininos. Esta reinserção do feminino na história, resgatando o prazer, a solidariedade, a não-competição, a união com a natureza, talvez seja a única chance que a nossa espécie tenha de continuar viva.” E, com isso, as bruxas da Idade Média podem se considerar vingadas.

Mais veloz que o efeito de um feitiço, a mariposa-bruxa pousa em meu ombro, sussurra algo em linguagem de outras eras, que traduzo como um agradecimento por tão amistosa recepção. Sorte minha, gratidão, respondo em pensamento.

Voltar

Marcela Guimarães Neves

Advogada e escritora pernambucana radicada em Vitória, a cidade que escolheu para viver. Leitora dedicada desde a infância, nesta página compartilha textos que falam da vida e dos livros, se é que seja possível distinguir entre eles.

© 2022 Marcela Guimarães Neves