Meninos de olhos áridos, como o solo rachado do sertão de Pernambuco. Nós os vimos pela janela arenosa do carro rumo ao nosso novo lar. Eles não nos viram. A velocidade do carro, embora não fosse tão alta, era elevada o suficiente para que eles não percebessem os novos amigos que chegavam da capital.
Como alertou João Cabral de Melo Neto, o sol “tiro de inimigo” fazia a pele arder como carne fresca embrasada. Éramos três, eu e meus dois irmãos, a pedir clemência aos céus e água a quem passasse no nosso caminho.
Cidade canonizada e com visão privilegiada para o rio São Francisco, Santa Maria da Boa Vista nos acolheu como quem acolhe famintos filhotes caninos: com medo e incompreensão.
Como alienígenas de pele reluzente, os rebentos do novo juiz da comarca pisavam naquele terreno ermo e inóspito como quem pisa nas dunas vermelhas de Marte.
O togado anterior havia sido assassinado de emboscada por jagunços do velho Coronel Monteiro. Conhecidos pelo hábito de assistir ao “desmanche” dos corpos das vítimas pelas pirambebas, ferozes piranhas das torrentes do São Francisco, apreciaram ainda mais quando chegou a vez do meritíssimo Tobias Bevilácqua ser oferenda para essas pragas sertanejas.
“A casa dos falecidos juízes”, como era apelidada a nossa moradia, era a segunda melhor daquele município, pois não podia ser maior que a do prefeito nem menor que a do delegado. Afinal de contas, como sempre se diz por aquelas bandas, Dr. Teixeira foi “eleito” pelo povo.
Embora a seca castigasse dos miolos humanos aos quengos dos animais, a residência contava com a presença de árvores frutíferas típicas daquela região inclemente. Pitombeiras, jambeiros, sapotizeiros, toda uma flora doméstica que nos brindava com uma fartura isolada de sombras, aromas e sabores.
Da escola para casa, da mercearia para a beira-rio, da praça para a calçada de casa. Os perímetros circulares de atividades e lazer não eram muitos. Num lar ateu, dispensa-se a ida domingueira à igreja, o que limitava ainda mais as possibilidades de distração.
Se desmantelo só presta grande, para Dona Cândida, mãe daqueles infantes enérgicos e calorentos, não era só um a destruir tudo o que via pela frente, mas três monstrinhos entediados a implodir a fantasmagórica habitação.
— Eles precisam de amigos, de distração, marido!, gritava Dona Cândida já perdendo a doçura.
— Tem uns meninos na estrada perto rio. São os filhos de Jurandi, o caseiro do delegado, respondeu aflito o juiz Josué Gonzaga Ribeiro.
— Vão brincar com eles, pestes, preciso organizar o jantar para Padre Bento!
— Mas eles ficam parados lá na beira-rio, nem se mexem, parecem estátuas de areia, retrucou Rodrigo com constrangimento.
— Ah, então já se conhecem... Vão brincar lá, agora!
Seres de outro mundo, marcianos vestidos com roupas de linho branco engomado. Em nada parecíamos com aquelas crianças encardidas, quase desencarnadas. Enroladas em poucos trapos de chita, elas nos viam passar, enquanto urubus salivantes as viam morrer, um pouco mais a cada dia, como quem assiste a uma refeição suculenta assar em fogo baixo no forno de um cozinheiro injusto.
No entanto, conquanto fosse parco o recheio para sustentar aqueles ossos aparentes, a vontade de viver os impelia a esquecer o drama da fome para, arrastando aquelas barriguinhas de umbigos saltitantes, aceitarem o nosso convite a entretenimentos infantis.
A gente não quer só comida, mas ela é imprescindível para se ter direito a alguma diversão e arte. Para conseguirmos parceiros de jogos, desenhos e brincadeiras, sabíamos que os novos companheiros de infância precisavam de parceiros para encher-lhes os aerados buchos.
O balde de lavar as roupas de cama transformou-se na cesta de um piquenique diário e improvisado que levávamos a Cirilo, Joca e Ernesto antes de iniciarmos o futebol, o pique-esconde, os bonecos com massa de modelar e as pinturas com giz de cera (que escondíamos dentro dos bolsos das calças, deixando-as com as marcas dos nossos arroubos cotidianos).
Aqueles três mosqueteiros, a defender bravamente o reinado da inocência, sonâmbulos de sono, acordavam de madrugada para preencher o recipiente com toda sorte de mantimentos. Atentos à vigília da mãe, que por aquelas bandas começava bem cedo, tentavam evitar o flagrante delito.
Socávamos no balde tudo o que encontrávamos na dispensa e na geladeira: das frutas resistentes do quintal ao jantar da noite anterior, tudo, como dito, às escondidas, pois estoque é coisa necessária no sertão, além do combate a qualquer desperdício.
Dona Cândida intrigava-se com o sumiço dos alimentos daquela forma tão rápida e constante. Suspeitou de tantos absurdos (de bandidos a chupa-cabras) que, por fim, decidiu ficar à espreita em frente à geladeira, segurando um porrete feito de galho de umbuzeiro, pronta para descobrir a face lazarenta daquele larápio.
Ao ouvir passos sincronizados e quase silenciosos, a esposa do magistrado percebeu que não era só um, mas vários gatunos que invadiam sua casa durante aquela madrugada sem estrela nem réstia ventania.
Como a coragem de quem espera defender da fome as três bocas saídas de seu ventre, a frágil Dona Cândida, numa alquimia que só o amor materno possibilita, transmuta-se em leoa sanguinolenta e, num salto quase olímpico, acerta, sem pena, a arma mortífera nas entidades que se apossavam de seu refrigerador.
— Não faz isso, mãe!!!
— Socorro, a mãe está louca! Pai, acorda! Ela está batendo na gente!
Percebendo que a expressão “cega de raiva”, se aliada a uma lamparina de pouca força, causava estragos traumatizantes em suas crias, Dona Cândida voltou a si e, aos prantos, gritava desculpas desoladas aos seus três filhos que sangravam pelos cortes provocados pelo tacape artesanal.
No entanto, a dor que mais lacerava os três meninos não era a proveniente dos golpes alucinados da mãe, mas da certeza de que não teriam mais como alimentar os três amigos. Sem alimento, não há força e, sem força, não há brincadeira.
Advogada e escritora pernambucana radicada em Vitória, a cidade que escolheu para viver. Leitora dedicada desde a infância, nesta página compartilha textos que falam da vida e dos livros, se é que seja possível distinguir entre eles.
© 2022 Marcela Guimarães Neves