1º de abril de 2024

A mão que abandona o berço - uma crônica jurídica

Marcela Guimarães Neves

Quem ama educa e esquece a própria vida? Quem cuida de quem cuida se quem cuida não tinha ideia da escravização que seria esse cuidado? Mãe é mãe, paca é paca e mulher é tudo... Um bando de mamíferas cansadas, que, se tomar a pílula azul da maternidade, conhecerá um admirável mundo novo, longe da sensação de liberdade e desperta para as correntes em forma de fraldas, uniformes escolares e cheques especiais para dar conta de outro ser?

Renúncia. Nenhuma palavra resume tão bem a revolução da maternidade.

Já nos primeiros enjoos da gravidez, a renúncia prenuncia-se como um “padecer no paraíso”. Porém, com o tempo, revela-se uma espada Dâmocles pendurada acima das cabeças femininas, a fim de que se atentem ao risco da maternação.

Pelo esforço em prol da propagação da espécie, a fêmea deverá declinar da sua disposição física, do tempo de autocuidado, dos projetos profissionais, lazeres e prazeres, enfim, deverá repelir grande parte da deliciosa existência que levava antes da nidação do minúsculo óvulo às paredes do seu endométrio. E note-se que, neste caso, não há alforria possível, a prisão perdura até o fim da existência materna, perpetuando-se o cansaço até que este vire cabelos brancos, rugas, ansiedades e dores na cervical por acúmulo de preocupação.

No entanto, há diferenças: um monturo de células pregadas ao útero não é idêntico a um pequeno feto com a cara do Alien, que não será igual a uma linda criança berrando de frio sob o incômodo da luminosidade original. Daí a importância da baliza do tempo para a tomada de decisão. Meu corpo, minhas regras, sim, mas quando houver um corpo com apenas um conjunto de células a ele acopladas.

Vão dizer que é exagero, eu sei. Que sou uma mãe desnaturada, talvez seja. Mas o fato é que a função de mãe e sua miríade de infindáveis atividades nada têm a ver com o amor de mãe, o sentimento real e verdadeiro que, muitas vezes (nem sempre), ocorre entre una madre y sus hijos (sim, em espanhol, para evidenciar esse nosso latino e tropical amor materno pelos rebentos).

Diante da árdua missão de cuidar de outro humano, a capacidade de deliberação sobre a maternidade deve caber àquela que ainda não se dá conta dos intrincados contornos dessa “tirania espartana da progenitura”.

Em um país como o Brasil, ou seja, num ambiente hostil às mulheres em todos os aspectos, há que se ter o discernimento acerca da relevância de tal resolução (vide, leitor(a), as estatísticas da violência doméstica/feminicídios, do reduzido acesso a creches e pré-escolas, do número de mães solo, da falta de redes comunitárias de apoio, etc.). Nesse cenário inquietante, crianças continuam nascendo e morrendo antes do tempo, já que muitas dentre as viventes não convivem com balas de açúcar, mas de fuzil...

Ainda que não seja em nível constitucional, como bravamente decidiu o judiciário francês, a ampla autorização ao abortamento, nos limites temporais previamente fixados, pode e deve ser objeto de legislação infraconstitucional também no nosso sistema jurídico. Pois o que deve ser considerado uma vergonhosa omissão de socorro por parte do Estado é justamente o índice alarmante de mortes por abortos clandestinos no Brasil.

Por quanto tempo os olhos da Justiça permanecerão vendados para a ausência de medidas estatais, sobretudo quando se trata da criação e educação daqueles pequenos/as que, contando apenas com a sorte, tornar-se-ão cidadãos/ãs brasileiros/as?

Ante um cenário assistencial desfavorável ao encargo das genitoras brasileiras, vale lembrar a máxima de Sófocles: “Jamais ter nascido pode ser a maior dádiva de todas”.

Tomando distância das respostas infantis a essa complexa questão, em nosso país, se o braço que cuida deve ter a força de um estivador, leve de julgamentos deve ser a mão que abandona o berço.

(1) Segundo a Lei Simone Veil, é permitido que as mulheres abortem até a 14ª semana de gestação.

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Marcela Guimarães Neves

Advogada e escritora pernambucana radicada em Vitória, a cidade que escolheu para viver. Leitora dedicada desde a infância, nesta página compartilha textos que falam da vida e dos livros, se é que seja possível distinguir entre eles.

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