7 de julho de 2022

A conta

Marcela Guimarães Neves

O desejo maior da primavera é a nossa libertação. Ela exige que janelas se descortinem, portas se abram e pessoas saiam de casa para uma entusiasmada ocupação de praças, parques e praias. Atendendo ao anseio da estação das flores, Flora, uma advogada militante da área ambiental, decidiu aproveitar o sábado ensolarado para um passeio com as amigas: sem dúvida uma de suas maiores alegrias.

Local escolhido: um café/bar no coração do Parque da Pedra da Cebola. Além do famoso rochedo (na visão de Flora, mais parecido com uma cabeça de alho do que com o bolbo do outro legume), o bioma exuberante inspirava abstrações poéticas em seu espírito propenso a admirar toda sorte de beleza, o que se intensificava quando a dádiva era dada de graça, pela própria Mãe Terra.

No entanto, como todos sabemos, o concreto da realidade asfalta delírios oníricos. Longe de aplaudir o esplendor de todo o verde ao redor, Flora foi abordada pela amiga Patrícia, também conhecida por Paty, acerca de uma peça de vestuário que, segundo ela, a amiga não poderia deixar de comprar. O objeto de fetiche era uma calça denominada destroyed, cultuada pelas entidades estilísticas da nossa hipermodernidade.

Como dito anteriormente, toda sorte de beleza fascinava a advogada, inclusive aquela que fenece, perece, se destrói ou, num primeiro momento, possa causar repulsa. Flora concorda com o genial James Joyce, quando ele explica, na obra Um retrato do artista quando jovem, que mais importante é a emoção estática da própria estética, ou seja, diante de uma verdadeira obra de arte, “a mente é paralisada e elevada acima do desejo e da repulsa.”

E eis a questão. De acordo com a bem-informada Patrícia, o interessante em tal vestuário está no fato de ele ser repleto de buracos, rasgões e fios soltos, como se fora proveniente de uma perigosa zona de combate. Animada com a arte conceitual da peça, logo a ambientalista pergunta onde poderia encontrar um brechó que vendesse calças oriundas de áreas em conflito armado ou guerra declarada (pensou que talvez pudesse participar de algum voluntariado para o auxílio de feridos ou refugiados).

Com um olhar de deboche que Flora conhecia de longa data, Paty devolve como resposta um repertório de marcas famosas (e caríssimas) especializadas em calças destroyed. Sem querer replicar a ironia dos olhos da amiga, a ambientalista procurou compreender o que a faria comprar, sobretudo por um preço excessivo, uma vestimenta que, muito provavelmente, não aguentaria nem três lavagens em sua turbinada máquina de lavar (recomendação de Beatriz, uma verdadeira PhD em eletrodomésticos).

Para além da jocosidade do enigma, Flora precisou lembrar às mulheres ali presentes que todas tinham uma conta muito mais séria a pagar. Aliás, não só elas como toda a humanidade. Essa fatura é nosso débito com a natureza. Não é exagero quando dizemos que cada um de nós custa muito caro ao planeta, e que cada coisa que usamos, de que gozamos e usufruímos são partes de um Todo a que pertencemos. Cada pedaço arrancado deve ser fruto de uma grande reflexão, visto que pode ser o fragmento a faltar em outro canto do nosso ecossistema.

A fim de aprofundar a análise, Flora precisava, no entanto, de uma boa xícara de café. A cafeína ativa recantos do cérebro particularmente afeitos à filosofia. Exímia conhecedora da bebida, foi com grande satisfação que a advogada provou e aprovou a chávena energética do estabelecimento do Parque da Pedra da Cebola.

Cláudia, do outro lado da mesa, interroga-a com um tom de voz um tanto elevado para ocasião: “Mas eu tenho o meu estilo, minha personalidade, meu modo de expressar a minha identidade, não é? E se eu precisar de vários objetos para afirmar a minha autenticidade? Eu teria de me uniformizar para fazer esse pagamento ao Universo?” Com efeito, ótimas indagações. A estética deve submeter-se a uma ética que não preservaria a individualidade?

Flora argumenta que, para Kant, seria o belo um símbolo do bem moral. Em sua obra A crítica da faculdade do juízo, o filósofo de Königsberg afirma que o bem e o belo devem se reconciliar na unicidade do espaço suprassensível, sendo um dever de todos promover a união desses dois arquétipos.

Flora não queria ir tão longe, bem como não se sentia apta a dar conselhos. Talvez nunca chegaria à simplicidade voluntária descrita pelo grande mestre Henry David Thoreau, para quem quanto mais se acumula coisas supérfluas, mais pobre se é. Também como ele, a advogada desconfiava de eventos que lhe exigissem roupas novas, mas ainda não era capaz de isolar-se em uma singela residência, como a do escritor estadunidense, próxima ao lago Walden.

Definitivamente não. Tentando levar a vida estética da forma mais prática possível, porém seguindo vaidades que assumia sem constrangimento, Flora acreditava que o “acertar as contas com Pachamama” pudesse envolver outros desafios, tais como uma humana contribuição à comunidade, por mais extensa e global que fosse. Viver em harmonia com a natureza deveria ser visto pelo viés do nosso engajamento para com o mundo e os outros habitantes deste espaço comum. O consumo consciente de produtos, o reuso, a reciclagem seriam pilares básicos da sustentabilidade do meio ambiente, devendo configurar um padrão de comportamento ético e responsável.

Entretanto, assim como demostramos a nossa autenticidade por meio de certos cânones de moda (que talvez não nos proporcionem a tão almejada authentic life das propagandas de televisão), há que se ter na consciência que a existência, para ser bem vivida, deve despejar, em nosso habitat natural, avalanches de talentos, ideias, arte e cultura, dentre outras oferendas oriundas da singularidade de nossas estruturas psíquicas espirituais. Em um sistema onde muitas atividades já são realizadas por maquinários e engrenagens tecnológicos, a nossa contribuição envolverá sobretudo atributos humanos. Ademais, como bem cantou Taiguara, “a pior morte que existe é se viver inutilmente”. Lutemos, portanto, para que sejamos humanamente úteis, a fim de que este triste ocaso não seja nem o nosso nem o da Terra.

Já era quase noite quando Patrícia argumentou que hábitos não se mudam da noite para o dia e que sua addition já estava paga, pois já cuida de dois filhos e de um marido que parece um filho mais velho. Com uma ponta de inveja nas cordas vocais, Cláudia retruca que a colaboração de Paty foi a de acrescentar duas faturas a mais para o orçamento da humanidade. Sem ser tão radical, Beatriz replica que filho é uma bênção, pois pode bem ser um “Einstein do futuro” e ajudar a melhorar o planeta. Ou destruí-lo em pedaços atômicos sem conserto, como a aparência de uma calça destroyed, alertou Flora.

Vendo que a discussão permanecia inconclusa, como um hermético mensageiro do plano da realidade, o funcionário do café, com uma pequena pasta nas mãos - contendo o valor total do nosso consumo - além de seu inseparável aparelho de cartão de crédito, foi o sinal da Sincronicidade para que todas voltássemos aos lares com a reflexão do dia latente em nossas mentes:

- Aqui está a conta, senhoras.

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Marcela Guimarães Neves

Advogada e escritora pernambucana radicada em Vitória, a cidade que escolheu para viver. Leitora dedicada desde a infância, nesta página compartilha textos que falam da vida e dos livros, se é que seja possível distinguir entre eles.

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