A noiva de Paris

Paris não é uma festa

Anaximandro Amorim

“Não se nasce mulher, torna-se mulher”.
Simone de Beauvoir, filósofa.

Marcela Guimarães Neves é pernambucana radicada em Vitória, Espírito Santo. Advogada, com Mestrado na Sorbonne, professora de francês, ávida leitora e resenhista de mão cheia! Cresceu entre livros, escritores e juristas. Marcela é uma intelectual. Impossível, portanto, que uma mulher deste quilate não marcasse seu lugar no mundo da literatura. E de forma ousada: Marcela Guimarães faz seu début com nada menos que um bem estruturado romance, este A noiva de Paris.

O livro é, basicamente, a história de uma fuga. Mas pode ser também a radiografia de um encontro consigo mesma. E assim temos as aventuras e desventuras da protagonista, Sofia, cujo nome de batismo não poderia ser mais apropriado: sophia é sabedoria, em grego, e a personagem é uma estudante brasileira de filosofia, na parisiense Sorbonne (philos + sophia). Ela é casada com Léon, um etnólogo francês de caráter duvidoso. O nome do personagem também inspira ferocidade: “leão”, o rei da selva, um animal belo, porém, perigoso, que caça e abate sua presa. Sofia, a pura sabedoria, sofre nas mãos de um predador, o antagonista da história, um vilão que encara todas as cores do mal com a violência da besta-fera.

A autora já nos dá a tônica da obra a partir do primeiro parágrafo da história:

“Você não sabe o que a espera quando voltar”. A ameaça de Léon, ainda que habitual, sempre causava tremores em Sofia.

E assim, Neves cria uma tessitura narrativa de contrastes: não apenas Sofia, a sabedoria, se engana com Léon (mas não seria a paixão, com sua característica páthos, algo mais forte que a razão?), mas também contrasta o glamour parisiense com a realidade de tantas mulheres, neste mundo. Paris, a mítica Cidade-Luz, inspiração para tantos autores e que mexe com o imaginário das pessoas, é decantada em seus principais arredores por uma autora que, tendo ali vivido, conhece o local como a palma de sua mão. Aqui, no entanto, ao contrário do que nos disse Hemingway, Paris não é uma festa. A beleza da Torre Eiffel, do Louvre, da Champs-Élysées e da Sacré-Cœur é ofuscada pela clausura de um minúsculo studio, testemunha da violência doméstica. Sofia é uma prisioneira que não tem outra escolha senão a fuga.

Além destes contrastes, o livro também possui outros, representados pelos seus personagens: a começar por Clara, que tem o passado turvo por uma infelicidade pessoal. A bela e rica moça loira tem em Paris não escolha, mas exílio, quando decide completar ali seus estudos após uma malograda festa de casamento: no dia das bodas, a loira descobre que seu noivo, Rodrigo, tem um filho com a empregada Amália, bela moça negra e suburbana. O noivo, empreendedor paulistano de sucesso do ramo da informática, é um arquétipo da hipocrisia das elites brasileiras, o típico “cidadão de bem”, que abusa de sua posição social de homem, branco, heterossexual e rico para contribuir ainda mais com os ritos de racismo estrutural que tantos, em nosso país, preferem não querer enxergar.

Youssef, o outro vilão de história, comparsa de Léon na organização mafiosa Lampedusa é mais um exemplo desta França desglamourizada. Ele é o chamado français d’origine, francês de origem e encerra em si uma das mais terríveis contradições daquela sociedade: não ser considerado, nem francês, na França, nem nacional na terra de seus antepassados, no caso, a Argélia. Youssef é um boeur (“árabe”), gíria dada em verlan (espécie de “quase-dialeto” muito comum sobretudo nos subúrbios franceses) para pessoas que, como ele, são alijadas da sociedade francesa, seja por sua origem geográfica, seja pela religião muçulmana. Para jovens assim, o único caminho possível é o pior de todos: o da criminalidade. De fato, Paris não é exatamente uma festa para todo mundo.

Daniel Andrade e Greta, outros dois personagens secundários (diria até de apoio à trama) também formam uma dupla de contraste: o primeiro, o jovem caboverdiano estudante de medicina, torna-se uma espécie de “anjo negro” da protagonista Sofia. Não sabemos com muita precisão se ele sente o preconceito de cor, mas a história nos traz pistas. Daniel, no entanto, é um refugiado da língua portuguesa, logo, de um outro universo, muito mais próximo do da personagem principal, ambos oriundos do Hemisfério Sul, da periferia do capitalismo. Ambos, literalmente, “falam a mesma língua”; Greta também enxerga o mundo por outro prisma, porém, o do alemão. Ela encerra o arquétipo da beleza germânica, mas também da arrogância do colonizador (ainda que saibamos ter a Alemanha saído tardiamente na horrível “partilha africana”). Ex-esposa de Léon e sua inimiga capital, tem um olhar eivado de preconceito e arrogância, não aceitando nunca perder o “posto” para uma “latino-americana”.

A dupla Sébastien e Luna Catalina também é digna de nota: Sábastien (ou Séb, para as amigas) encerra um contraste em sua própria genética: ele é um hermafrodita, tendo em seu DNA, portanto, o feminino e o masculino. Além disso, Séb é homossexual. Seria impossível a um homem como esse não conhecer e até entender a sensibilidade feminina. A ele, portanto, o mundo da arte. Séb é músico e também um incompreendido, não apenas pela sua condição genética e pela sua orientação sexual, mas também por ele preferir o feminino, mais próximo do aconchego, que o masculino, mais ligado ao violento. Esse feminino é representado com maestria na personagem Luna, uma peruana radicada na Cidade-Luz. Também ligada ao mundo das artes, aqui, artes plásticas e outra egressa do Terceiro Mundo, Luna representa o sagrado feminino, numa época em que as sociedades eram matriarcais. Ela é a bruxa, não como concebemos em nossos imaginários, mas como representante de uma tradição em que Deus era mulher e a elas era legado conhecer os mistérios ocultos das primeiras religiões. Luna é o contraponto da lógica racional, cartesiana. Ela não traz religião, mas religiosidade.

Tantos contrastes fazem com que A noiva de Paris seja uma obra repleta de reflexões e descobertas. Engana-se quem achar que se trata de um livro apenas para iniciados: cuidadosa, Marcela se esmera em colocar notas de rodapé, explicando pontos turísticos, adágios e citações literárias e filosóficas. Dona da história, aliás, ela se põe ali, como uma forma de assinar, afetivamente, a obra, numa brincadeira de Deus(a) - a criadora também se torna criatura:

No último degrau, porém, Sofia dá espaço para a entrada de Marcela, vizinha do segundo andar. Estudante do Mestrado em Direito na Universidade Paris II, Marcela acabara de chegar à capital francesa e estava animadíssima com a sua nova vida em Paris.

Sofia foge de sua triste realidade. Ela também começa animadíssima com sua vida parisiense, que se esgota quando, no dia da defesa de sua tese, ela é mais uma vez vítima da violência doméstica. Sua fuga, no entanto, é mais complexa: ela busca não apenas a liberdade, mas, também, o amor que pensou ter achado, ao casar-se com Léon. O “conto de fadas” vira “romance de estrada”, com direito a perseguições e tudo o que se tem direito. A noiva de Paris, portanto, é um romance de despedida, que radiografa os momentos finais daquele pesadelo. Sofia foge de tanatos, a morte, na tentativa de encontrar um eros, a pulsão da vida:

“O amor nunca será o inimigo. Eros é a força mais potente da natureza universal. Nociva é a projeção fantasiosa de um amor padronizado em histórias infantis; prejudicial é o desamor disfarçado de instituição respeitável, como também pode ser tóxico o sofrimentoisolado num quarto escuro sob a aparência de liberdade. Viver deve ser um caminho diário rumo à autonomia, à liberdade. O ser humano é livre quando conhece seus desejos e suas limitações, vivendo de acordo com os seus interesses mais íntimos. Autoconhecimento é a base do autoamor. Se, na trilha da liberdade, preferimos caminhar a dois (ou até a mais), isso é uma escolha que devemos fazer pensando no nosso bem-estar (...). Saber exatamente o que nos faz bem, o que nos traz felicidade, talvez seja a chave para não cairmos no conto do Barba Azul”.

Sofia é o arquétipo de todas as mulheres. Ela é racional, mas também emocional. Ela é frágil, mas também é forte. Ela é deliciosamente contraditória, um enigma, um ser que passeia pelo complexo, como sói ao feminino. Sofia traz em si a sabedoria de todas as mulheres que lutam para sobreviver em um mundo machista, violento, misógino, falocêntrico. Nem a literatura escapa: alijadas do cânone, de Enheduana a Safo de Mitilene, as mulheres sempre tiveram presença na palavra escrita. Marcela Guimarães Neves vem honrar essa tradição, em um romance bem escrito, elegante e tão necessário nestas épocas de intolerância e ódios exacerbados, marcando seu lugar de fala.

A autora promete.

Anaximandro Amorim é membro da Academia Espírito-santense de Letras (cadeira 40), da Academia de Letras de Vila Velha (cadeira 12), do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e mestrando em Estudos Literários (Ufes)   

 

Press release

Marcos Tavares

Na próxima quinta-feira (dia 06 /outubro), a partir das 18h, no espaço Terra Nova,  na Rua Elias Tomasi Sobrinho, nº 230, Bairro Santa Lúcia , em Vitória(ES),  CEP 29056-070 (contatos : (27)  99846-4430), pela Editora Pedregulho lançará o seu primeiro livro a escritora Marcela Guimarães Neves, uma revelação de hábil prosadora e prolífica poetisa.

Será um romance intitulado A noiva de Paris que, segundo o prefácio de Anaximandro Amorim, acadêmico consagrado, é obra bem urdida, com tessitura de contrastes sobretudo quanto à vida da protagonista Sofia. Essa, segundo Anaximandro, francófono qual a autora, encarna o  arquétipo de todas as mulheres: racional, mas também emocional; frágil, mas também forte; deliciosamente contraditória, um enigma, um ser que passeia pelo complexo, como sói ao feminino”, conclui.  Paris é o nada glamouroso ambiente das cenas.

Com proficiência na seara da Literatura vem atuando Marcela Guimarães Neves. Livros comenta com assiduidade  em seu  site “Vida Livresca”. Nos Escritos de Vitória nº 36, tematizando “Literatura em tempos de pandemia”, comparece com  crônica “A Velha Amiga”. Outros livros a publicar possui em preparo: Poemas de arrebol, Poemas de março, A aliança e outros contos.

De origem pernambucana (Olinda), a partir dos 11 anos de idade radica-se em Vitória pela circunstância de novo local de  trabalho do pai (José Neves, juiz federal). Já bem integrada  à cultura vitoriense, passa a amar a Capital capixaba.

Crescida entre livros da grande biblioteca paterna, entre escritores (é ficcionista seu irmão Rodolfo G. Neves) e juristas, tão logo alfabetizada, já aos 4 de idade punha-a a mãe (Danúbia Guimarães, advogada) a ler e a responder a oral questionário. Dessa prática, consolidou-se leitora ávida, refinou-se em interpretação, em releituras. Considera-se intelectual de linhagem existencialista.

Profissionalmente, é Mestra em Direito Público pela Universidade Paris II - Panthéon/Assas (França), pós-graduada em Direito Civil e Direito Empresarial pela Faculdade Damásio; na OAB-ES está secretária adjunta da Comissão Especial de Direito Cultural e Propriedade Intelectual e membro da Comissão de Direito Empresarial.

Com Mestrado na Sorbonne, leciona francês.

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Marcela Guimarães Neves

Advogada e escritora pernambucana radicada em Vitória, a cidade que escolheu para viver. Leitora dedicada desde a infância, nesta página compartilha textos que falam da vida e dos livros, se é que seja possível distinguir entre eles.

© 2022 Marcela Guimarães Neves